A discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a tributação de lucros de coligadas e controladas no exterior pode gerar um impacto de R$ 142,5 bilhões para a União em caso de derrota. A estimativa está em nota técnica da Receita Federal e é referente à devolução ou perda de arrecadação de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL do período de 2017 a 2021. Além do passado, a tese poderia reduzir o caixa da Fazenda Nacional em R$ 28,5 bilhões anualmente.
O cálculo, que consta da Nota Cetad/Coest nº 14, de 2023, foi feito a pedido da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e tem como base informações do Banco Central (BC), referentes aos lucros e dividendos recebidos no exterior, decorrentes de investimentos diretos de 2017 a 2021. O documento pondera que esse valor não leva em conta os contribuintes que possam ser atingidos pelo julgamento “e sim a partir de um conjunto deles que supostamente compartilharia situação tributável semelhante”.
O tema voltou à pauta do STF no início de fevereiro. Mas a análise foi suspensa por pedido de vista do ministro Nunes Marques e pode ser retomada em maio – o voto-vista deve ser apresentado em até 90 dias. Os ministros julgam a validade da incidência do IRPJ e da CSLL sobre empresas nacionais a partir dos lucros de coligadas no exterior em países que têm tratados com o Brasil para evitar bitributação. Hoje são 38 acordos em vigor.
Segundo advogados, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é mais favorável ao contribuinte, por reconhecer a prevalência dos tratados internacionais sobre a legislação interna brasileira. Mas no STF, por ora, a União vence o placar, por dois votos a um. De acordo com a procuradora-geral adjunta de Representação Judicial da PGFN, Lana Borges, o STJ não respeitou precedentes do Supremo sobre o assunto.
A maioria dos processos das multinacionais ainda está na esfera administrativa e os passivos não são provisionados porque as perdas são classificadas como possíveis, com base nos precedentes do STJ. O tema é controverso e normalmente decidido pelo voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – o desempate pelo presidente do colegiado, que é representante da Fazenda.
O Fisco entende que na, verdade, não está tributando o lucro das controladas no exterior, mas sim o da controladora no Brasil, que reflete o resultado contábil das empresas estrangeiras através do Método de Equivalência Patrimonial (MEP).
O método visa aferir o valor do investimento de uma empresa quando possui participação societária em outra. Por meio dele, o investimento é reconhecido pelo valor de custo e depois ajustado para refletir os resultados obtidos pela empresa investida, proporcionalmente ao valor da participação da investidora.
A metodologia é prevista na Lei das Sociedades Anônimas (nº 6.404/76) e depois foi incluída no ordenamento tributário pelo artigo 74 da Medida Provisória (MP) nº 2158/2001. O dispositivo diz que “os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento”.
A Petrobras é quem tem mais processos sobre o assunto – são cinco na Justiça. Em quatro deles já houve decisão desfavorável. No outro, venceu na segunda instância, mas está pendente a análise de recurso da PGFN. A Ambev tem quatro ações, mas só uma na Justiça, ainda em fase pericial.
A CSN discute quatro processos no Carf, ainda sem vitórias, e um quinto na Justiça. A sentença foi favorável, mas houve recurso da PGFN para o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6). Já a JBS sofreu alguns autos de infração entre 2006 e 2018 e todas as discussões ainda estão na esfera administrativa.
A Vale, em notas explicativas, diz que sofreu diversas cobranças relativas aos anos de 1996 a 2008. A discussão de 1996 a 2002 tinha impacto de R$ 2,3 bilhões, mas ela obteve decisão definitiva favorável. Para 2003 a 2012, o impacto é de R$ 22,2 bilhões. A companhia também informa que aderiu a um parcelamento, cujo saldo remanescente é de R$ 10 bilhões, a ser quitado em 58 parcelas.
Apesar de o caso da Vale não ter repercussão geral, será um importante precedente – é o primeiro e único caso a chegar no STF. Na Corte, a matéria não foi ainda analisada de forma tão aprofundada, sobre a prevalência dos tratados. O principal precedente é de 2013, quando foi validado o artigo 74 da MP 2158/2001 para coligadas em paraísos fiscais ou tributação favorecida (ADI 2588).
Agora, é julgado se a regra se aplica para empresas estrangeiras que estejam em países com os quais o Brasil firmou acordo para evitar bitributação. A mineradora questiona a “tributação automática” do IRPJ e CSLL sobre lucros auferidos por controladas da Bélgica, na Dinamarca, em Luxemburgo e nas Bermudas.
Até então, votaram com a PGFN os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Eles entendem que os tratados não inviabilizam a tributação dos valores no Brasil. O relator, André Mendonça, entendeu que a tese seria infraconstitucional. Mas disse que se ficasse vencido nesse ponto, seria a favor da Vale.
As decisões de primeiro e segundo graus foram favoráveis à União, mas o STJ reverteu o entendimento em parte – manteve a cobrança só nas Bermudas, pois não há acordo bilateral com o Brasil e é um paraíso fiscal.
Simone Dias Musa, sócia do Trench Rossi Watanabe, diz que há chances de o contribuinte vencer a disputa. Na visão dela, a tese defendida pela Fazenda de que o MEP representa por si só uma disponibilidade econômica ou jurídica para o contribuinte é equivocada. “A tese do MEP é que o lucro reconhecido contabilmente no Brasil das coligadas no exterior já permite que ele seja tributado. No entanto, os tratados para evitar bitributação devem ser usados para afastar a possibilidade de a jurisdição brasileira tributar o lucro auferido por uma empresa domiciliado no exterior”, diz.
O MEP, explica, é uma forma contábil de evitar que o balanço da controladora brasileira reflita o lucro do grupo econômico. “Não representa um lucro autônomo”, diz. “É um reflexo contábil de um lucro que é gerado por uma empresa no exterior, logo, o tratado para evitar bitributação cai como uma luva para afastar a tributação do lucro no Brasil enquanto ele não for distribuído.”
Mas para a procuradora Lana Borges, o lucro não precisa ser nacionalizado para ser tributado. “Ele já está dentro do patrimônio da controladora”, afirma. Ela entende que é uma questão de justiça fiscal. “Uma empresa no Brasil que não tem coligada no exterior paga os tributos uma vez que seus lucros são contabilizados, não quando são distribuídos. A controladora que tem controladas no exterior não vai pagar tributo?”
Lana ainda defende que não há que se falar em afastar a bitributação pelos tratados, pois não há incidência sobre o lucro obtido pela empresa no exterior. “Em regra, quem paga a tributação é a controladora. Estando no Brasil, a incidência é da norma brasileira, por isso que não temos bitributação”, argumenta.
Além disso, lembra, há na legislação brasileira ferramentas para que a controladora brasileira possa deduzir do imposto por ela devido, o tributo eventualmente pago sobre o mesmo lucro, no exterior, pela controlada – como o artigo 26 da Lei nº 9.249/1995 e, posteriormente, artigo 87 da Lei nº 12.973/2014.
O tributarista Telírio Saraiva, também sócio do Trench, reforça que o STJ definiu que os tratados devem prevalecer. “O Brasil precisa honrar o compromisso firmado com outros países”, afirma. Ele discorda dos votos de Mendes e Moraes. Eles defendem que a tributação no Brasil estaria alinhada com princípios da OCDE. “Mas a OCDE só autoriza a bitributação em casos de planejamentos tributários abusivos”, acrescenta ele, lembrando que o impacto da tese para as multinacionais é muito alto – de 34% sobre o lucro auferido por controladas no exterior.
O tributarista Eduardo Pugliese, sócio do Schneider Pugliese Advogados, diz que a Receita quer tributar os lucros das coligadas no exterior de forma automática. “Ela não espera a empresa estrangeira enviar o dinheiro para o Brasil, quer tributar tão logo exista o lucro lá fora, como se fosse uma disponibilidade automática”, diz.
Em nota, a CSN afirma que as regras previstas em tratados internacionais se sobrepõem, hierarquicamente, à regra interna de tributação em bases universais. “Há, portanto, prevalência das regras de direito tributário internacional sobre a legislação ordinária interna”, diz a empresa, citando julgados do STJ.
Procuradas, Vale, JBS e Ambev não quiseram comentar o assunto. A Petrobras não deu retorno até o fechamento da edição.
Fonte: VALOR