A Receita Federal decidiu que os acordos contra a bitributação assinados pelo Brasil não valem para as micro e pequenas empresas no Simples Nacional. O entendimento está em duas soluções de consulta editadas recentemente pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), que deve ser seguido pelos auditores fiscais de todo o país.
Nas respostas, a Receita levou em consideração a hierarquia de leis. Como os acordos foram internalizados por meio de leis ordinárias, afirma a Cosit, seus dispositivos não prevaleceriam sobre a lei complementar do Simples Nacional (nº 123, de 2006).
De acordo com as respostas, se uma receita de exportação de serviços for tributada no Peru ou no Chile, não é possível fazer o abatimento do Simples Nacional, a título de dupla tributação. “Desse modo, uma eventual retenção de tributo [peruano ou chileno] não é passível de dedução no PGDAS-D [Programa Gerador do Documento de Arrecadação do Simples Nacional – Declaratório], restituição ou compensação com tributo apurado na forma do Simples Nacional”, afirma a Receita.
Para o órgão, essa vedação não significa uma violação a direitos do optante porque a adesão ao Simples Nacional é facultativa. “Esse regime tributário oferece aos contribuintes o direito de escolher se fazem ou não uma troca compensatória entre suas vantagens e desvantagens. Todas públicas e notórias”, diz o órgão, acrescentando que a micro ou pequena empresa pode “desistir de fazer a opção ou pedir a exclusão”. “Em outras palavras, cabe ao contribuinte ponderar os bônus e ônus do Simples Nacional para decidir se quer ser optante e arcar com as consequências jurídicas dessa decisão.”
Com o entendimento, segundo advogados tributaristas, micro e pequenas empresas exportadoras optantes do Simples Nacional podem ser bitributadas em virtude da impossibilidade de aplicação dos acordos, dada a prevalência da lei complementar que regulamenta o regime.
“A Receita impõe um novo custo às pequenas empresas exportadoras. Deverão considerar o acúmulo da carga tributária caso suas receitas decorrentes da exportação sejam gravadas no exterior”, diz o advogado Guilherme Galdino, do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri, acrescentando que, em razão desse entendimento, essas companhias devem levar em consideração os efeitos da bitributação na tomada de decisão sobre a adoção de regime tributário.
No seu entendimento, além de problemas econômicos e políticos, a posição da Receita nas soluções de consulta não possui respaldo jurídico. “Empresas optantes pelo Simples Nacional fazem jus, sim, aos benefícios dos acordos para evitar a dupla tributação negociados pelo Brasil”, afirma ele. “O Brasil não possui poder de tributar, seja mediante lei complementar, seja mediante lei ordinária.”
Raphael Lavez, do escritório Lavez Coutinho Advogados, considera que o caminho é a judicialização porque ao final as soluções de consulta violam os tratados firmados pelo Brasil. “A Receita Federal descumpre um compromisso internacional assumido pelo Brasil”, diz o advogado. “O tratado limita a aplicação da lei brasileira.”
De acordo com Lavez, há julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) que derruba o argumento da Receita sobre hierarquia de leis. Trata-se da discussão sobre prisão de depositário infiel (RE 466343). Os ministros, em repercussão geral, consideraram ilegal a medida, embora autorizada pelo artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal.
Entenderam que deveria prevalecer o Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional sobre direitos humanos, que só admite a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos – e, consequentemente, impediria a prisão do depositário infiel.
“Um acordo [contra a bitributação] é uma limitação autoimposta à soberania tributária do Brasil e que confere direitos ao contribuinte. Antes de ser contribuinte, o empresário é um cidadão”, afirma Lavez.
Fonte: VALOR