O STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem reafirmado o entendimento segundo o qual, conforme o artigo 185 do Código Tributário Nacional, são consideradas fraudes absolutas as alienações de bens do devedor posteriores à inscrição do crédito tributário na dívida ativa (CDA), a menos que ele tenha reservado quantia suficiente para o pagamento total do débito. O problema é que a Corte está reproduzindo este entendimento nos casos de alienações sucessivas de imóveis, independentemente da boa-fé do comprador — que desconhece o passivo fiscal anterior
Tomemos como exemplo o seguinte: “A” vende em 2008 um imóvel para “B”. Posteriormente “B” aliena esse mesmo imóvel para “C” em 2018, que, em 2023, faz a venda final para “D”. Antes de adquirir o imóvel, “D” analisa toda sua documentação, verifica que “C” possui todas as certidões negativas e que a matrícula do imóvel não aponta nenhuma indisponibilidade, penhora ou restrição.
Contudo, no entendimento atual do STJ, “D” pode vir a perder o imóvel pela existência de uma “fraude” decorrente de um crédito tributário inscrito em dívida ativa de “A” ou “B”, mesmo que não haja nenhuma averbação na matrícula do bem.
A situação é completamente desproporcional (ou mesmo lógica) nestes casos. Não se pode querer impor ao comprador, nesse tipo de cadeia de alienações sucessivas de imóveis, a obrigação de investigar as certidões negativas de todos os proprietários anteriores.
Ainda, por se tratar de uma presunção absoluta de fraude, uma vez concretizado o negócio, a única prova que o comprador de boa-fé pode vir a fazer é que o devedor possuía bens aptos a satisfazer o crédito — algo extremamente difícil de se obter.
A postura inflexível do STJ acaba por desvirtuar o instituto da fraude à dívida tributária, criado para coibir atos abusivos e fraudulentos que o devedor tome no intuito de fugir à sua responsabilidade patrimonial.
Ora, se até o direito criminal prevê que o tempo é capaz de extinguir a punibilidade de determinado crime, qual a justificativa de que o tempo não flexibilize a interpretação do artigo 185 do CTN a fim de mitigar o reconhecimento de um ilícito em favor de um terceiro de boa-fé?
Segurança e execução
Há um embate entre a segurança jurídica, elemento central do Estado democrático de Direito, e a crise do sistema de execução do direito brasileiro.
De um lado há um gargalo enorme, com número milionário de execuções fiscais abarrotando os Tribunais, causando um congestionamento processual, gerando um elevado número de execuções frustradas.
Como remédio dado para tentar sanar essa crise foram criadas medidas executivas atípicas como forma de tentar satisfazer créditos, bem como vem sendo flexibilizado o reconhecimento de fraudes, impactando terceiros.
Ocorre que nestes casos o tratamento mais agressivo da execução vai no sentido contrário da segurança jurídica. Essa interpretação isolada do artigo 185 do CTN afastando todo o sistema de garantias reais que o direito privado possui.
Não bastasse isso, o entendimento do STJ fere a Lei de Registros Públicos, que disciplina mecanismos de publicidade que possuem o objetivo de promover a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos, onde a matrícula do imóvel é o documento centralizador de eventuais restrições e onerações.
O entendimento jurisprudencial do STJ, na verdade, fomenta a criação de microssistemas, onde não se tem mais fraude à execução de um modo geral, mas fraude à execução tributária, fraude à execução trabalhista, fraude à execução civil, e assim por diante.
O que deveria haver, na verdade, é um entendimento único sobre o que configura uma fraude à execução. Inclusive, para o caso concreto não haveria nem a necessidade de alteração legislativa, mas uma alteração da jurisprudência.
Idealmente, o artigo 185 deveria ser interpretado em conjunto com o artigo 54, III da Lei 13.097/2015 e a Lei de Registros Públicos, de modo que apenas nos casos em que a CDA estivesse averbada na matrícula do imóvel é que se geraria para terceiros a presunção absoluta de fraude. A legislação está posta. Basta aos tribunais aplicá-la.