Pelo menos quatro farmacêuticas – a Blowtex, Blau Farmacêutica, Inaltex e Semina – conseguiram sentenças na Justiça de São Paulo para manter a isenção de ICMS sobre preservativos. Há também decisão do Tribunal de Justiça do Estado (TJSP), que ratificou liminar favorável. O benefício fiscal, que existia desde 1998 e duraria até abril de 2026, foi revogado por comunicado do governo paulista em maio. A renúncia fiscal com o produto era de R$ 27,3 milhões anuais, segundo consta na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o ano de 2025.
Algumas decisões garantem a desoneração tributária até o fim do ano, baseado no princípio da anterioridade, de que só é possível cobrar um imposto majorado no ano fiscal seguinte. Já outras asseguram a isenção até abril de 2026, prazo previsto inicialmente pelo Convênio nº 226/2023 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), assinado por todos os Estados em dezembro do ano passado.
O primeiro sinal amarelo para os contribuintes foi em 1º de maio, quando o governo editou um decreto, o nº 68.492/2024, alterando o regulamento de ICMS. Nele, listava uma série de produtos que teriam as isenções prorrogadas e os preservativos não eram um deles. Na visão dos contribuintes, poderia ter sido algum deslize ou esquecimento da administração pública.
Entretanto, dias depois, um comunicado do subsecretário da Receita Estadual, Luiz Marcio de Souza, deixou claro que esses produtos ficaram fora da lista da isenção. Foi aí que as empresas foram ao Judiciário. Invocaram os princípios da anterioridade, previsto no artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN), o da lealdade – pois a administração deveria corresponder às expectativas por ela mesma geradas – o da boa-fé e o da segurança jurídica.
Já a Secretaria da Fazenda e Planejamento (Sefaz) alega nos processos que “por motivos de conveniência e oportunidade”, revisou a política aprovada pelo Confaz. E que não se aplicaria a anterioridade uma vez que “o aumento do tributo e a revogação de benefícios fiscais possuem naturezas jurídicas distintas, de modo que não se submetem ao princípio da anterioridade”.
Mas esse não tem sido o entendimento dos magistrados. As sentenças favoráveis à Blowtex e a Inaltex mantêm a isenção até abril de 2026. Para o juiz Kenichi Koyama, da 15ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, que analisou o processo da Inaltex, o comunicado do governo “não deu vazão à isenção internalizada no Estado”.
Segundo ele, a isenção tinha como condição a redução do preço dos preservativos, como disposto no convênio do Confaz. E, por ser uma isenção condicionada, não poderia ser “revogada de surpresa”, pois exigia do contribuinte a redução do valor da mercadoria.
“O Comunicado SRE 06/24 carece de densidade normativa política e jurídica para pronunciar por si indiretamente o fim de isenção condicionada aprovada em Confaz, ratificada por Decreto e aquiescida pela ALSP [Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo]”, afirma o juiz na sentença (processo nº 1032404-88.2024.8.26.0053). A Fazenda entrou com recurso, mas ele ainda não foi analisado.
O tributarista Nilton Ferreira, do Rocha & Barcellos Advogados, que defendeu a Inaltex, diz que a indústria é isenta de ICMS há mais de 25 anos. “Faz parte do plano de negócios da empresa. Teriam a isenção e foram pegos de surpresa”, diz Ferreira, acrescentando que eventual retorno da carga tributária poderia acarretar até no fechamento da fábrica em São Paulo.
“A grande questão é que o comunicado vai contra a própria legislação do Estado de São Paulo, porque houve a internalização [do convênio] por meio de decreto e o Estado está tentando esconder”, afirma. Pela lei, um convênio aprovado pelo Confaz deve ser internalizado pelo Estado e submetido ao Legislativo. Se não houver manifestação dos deputados, é aprovado tacitamente – como ocorreu nos últimos anos.
No caso da Blowtex, o juiz André Luis Maciel Carneiro, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Santos, entendeu da mesma maneira. “A pretexto de propiciar a adequada execução da lei tributária, o comunicado inovou na ordem jurídica, revogando norma de isenção e, assim, impondo restrições a direitos nela não previstos, subvertendo a hierarquia normativa prevista no art. 96 do Código Tributário Nacional, e assim, o princípio do paralelismo das formas”, diz (processo nº 1013576-69.2024.8.26.0562).
Já as sentenças nos processos da Blau Farmacêutica e da Semina, o benefício foi permitido só até dezembro deste ano, por conta da anterioridade. No caso da Semina, foi porque ela só abordou essa questão (processo nº 1031391-54.2024.8.26.0053).
Já a Blau entrou com dois mandados de segurança – um em Osasco e outro em Santos, por onde entram as importações – obtendo sentença e cautelar.
No segundo processo, a extensão até 2026 não foi acatada pelo TJSP, em julgamento unânime. Para o relator, o desembargador Maurício Fiorito, não há direito adquirido em desonerações fiscais, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 1901638. E como a empresa já obteve liminar assegurando a isenção até 31 de dezembro de 2024, o mais correto seria esperar a sentença, sob risco de supressão de instância.
João Vitor Kanufre Xavier, sócio de Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados, concorda com ambos os argumentos dos contribuintes – tanto a anterioridade quanto a ilegalidade do comunicado. “É um ato administrativo feito pela administração pública, mas um comunicado não tem o mesmo peso normativo que um decreto”, afirma. Ele lembra que a alíquota padrão do ICMS em São Paulo é de 18% e a dos preservativos é de 7%, por ser produto essencial.
Além dos preservativos, outros 22 itens tiveram a isenção fiscal revogada pelo governo, como moluscos, bulbo de cebola, aviões e pós-larva de camarão.
Ao Valor, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) informou, por meio de nota, que “as decisões proferidas nos processos mencionados não transitaram em julgado, sendo objeto de recursos apresentados pela PGE”.
Para a Blau, a atitude do governo de São Paulo com o comunicado foi “contraditória”, “gerando uma situação de desequilíbrio e falta de isonomia tributária”. Alega também que há efeitos concorrenciais envolvidos, pois outros Estados mantiveram a isenção até 2026. E que o benefício fiscal tem caráter social, “uma vez que o produto integra o rol de bens e ações para o combate e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis”.
Procurada pelo Valor, a Sefaz não deu retorno até o fechamento da edição, assim como as outras três empresas.
Fonte: VALOR