A motivação do presente artigo decorre de ato recentemente exarado pela administração fazendária paulista. Ele sedimenta a ideia de que o Projeto de Lei (PLP) nº 108, que pretende regulamentar a reforma tributária, não pode estreitar ainda mais os mecanismos de controle de legalidade disponíveis ao contribuinte jurisdicionado.
Na manifestação da Consultoria Tributária (RC nº 28506/2023), o órgão manifestou no sentido de que “verifica-se que a aplicação literal do texto da referida lei implica reconhecimento de que o legislador paulista concedeu uma isenção em desacordo com o disposto no artigo 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal.”
Isso ocorre em tempos da construção de um Comitê Gestor do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e estruturação de um novo contencioso administrativo no âmbito do PLP 108 que traz, em seu bojo, elemento que simplesmente afasta o dever dos julgadores administrativos de aplicar a legalidade, escravizando-os à observância de atos do Poder Executivo. A descrição desta conduta é típica do fenômeno de estado de exceção, o que em nada condiz com o esforço reformista de apaziguar e distensionar a relação entre Fisco e contribuintes.
Esta inaceitável proposição nada tem de ingênua. Ao contrário, se adotada em adição a outros elementos que hoje vigoram na relação entre Fisco e contribuintes, permitirá a implementação de um inevitável “autoritarismo fiscal”.
A implantação de um regime autoritário ocorre de diversas maneiras, desde uma implantação brusca e rápida com o uso da força e do medo (golpe de Estado), por tradição ou até de forma gradual e pouco perceptível pelos governados com a ampliação crescente de poder por líderes carismáticos que, em nome do bem comum, solapam irremediavelmente direitos dos seus governados.
Ao contrário do que se imagina, os regimes autoritários não estão decrescendo pelo mundo, havendo, na atualidade, cerca de 59 países com feições autoritárias (Índice de Democracia 2023, Economist Intelligence Unit). Segundo o estudo, 48,4% da população mundial vive em algum tipo de democracia, 7,8% vive em democracias plenas e 39,4% da população mundial vive em regimes autoritários. O índice de democracia coloca o Brasil na indesejável 51ª. posição no ranking mundial.
Emprestando a expressão de Zygmunt Baumann, Pedro Serrano classifica de autoritarismo líquido não mais aqueles autoritarismos clássicos nazifascistas do século XX em que imperava o total estado de exceção, mas medidas de exceção fragmentárias no interior de um sistema.
Vale dizer, não há a suspensão ampla de direitos e garantias individuais para que o Poder Executivo administre o país sem amarras legais, mas há, de forma pontual e isolada no sistema, uma verdadeira sobreposição de atos do executivo à lei. Há, nesta toada, um estado de exceção fragmentado e por vezes pouco notado, mas que não deixa de violentar – ou permitir que violentem – direitos e garantias constitucionalmente assegurados. A violação está presente de forma muito mais cirúrgica, eficiente e dirigida a situações estratégicas do poder.
É fácil acompanhar o enredo do estado de exceção fiscal que está em marcha:
O Poder Executivo edita uma portaria, resposta a consulta tributária ou instrução normativa contrária a lei. O auditor fiscal a elas vinculado fiscaliza o contribuinte em 5 anos. Esta auditoria pode demorar mais de ano de análise de dados e documentos. É lavrado um auto de infração em face do contribuinte, exigindo-lhe o imposto, multa e juros. Ao supostamente franquear o direito de defesa, o contribuinte tem apenas 20 dias úteis para impugnar a exigência, sem o direito de apresentar provas novas, mesmo que precise contratar um laudo de auditoria independente para contrapor às acusações fiscais. No processo, terá a decisão de um julgador técnico que “não pode aplicar a legalidade”, mas deve obediência irrestrita àquele ato do poder executivo. Esta decisão constituirá um crédito líquido e certo contra o contribuinte. Na fase de cobrança, o contribuinte será submetido a várias medidas administrativas de cobrança (protesto, negativações e, quiçá, execução administrativa). Se for para juízo, deverá dispor de patrimônio suficiente para garantir a dívida (aquela mesma formada a partir de um “ato do poder executivo contrário à lei”). No processo judicial, o Estado tem prazos dobrados e isenção de custas, mas o contribuinte terá que arcar com elevados honorários advocatícios. O processo judicial pode demorar, sem exagero, de 10 a 20 anos. Neste período, além de permanecer com o bem indisponível, o contribuinte perderá muitos negócios por conta das negativações e da contingência. Ao final, pode ter uma decisão favorável, o que autoriza os pretendentes à ditadura fiscal dizer que “o judiciário sempre os protegerá”. Mas as decisões do Judiciário que favorecem contribuintes têm sido invariavelmente moduladas, de forma que os seus efeitos podem valer apenas para o futuro. Para piorar, o Supremo Tribunal Federal (STF), sob a pena de alguns ministros (não eleitos pelo povo), pretende mitigar os honorários de sucumbência do contribuinte porventura vencedor, o que representa verdadeira flexibilização de instrumento de desincentivo da Fazenda Pública ao litigio, mesmo que ao arrepio de disposição expressa do CPC. E se o contribuinte, neste elástico lapso temporal, ter sido obrigado a pagar, poderá reaver o seu dinheiro via precatórios que, aliás, têm sido pagos por quase a totalidade dos Estados e municípios com ao menos 15 anos de atraso.
O administrador público (aqui referindo-se aos que atuam na fase administrativa de constituição do crédito tributário) inclina-se para a maximização da arrecadação, flexibilizando a legalidade quando possível (tal como a resposta à consulta acima indicada) em busca de satisfação dos cofres públicos. As procuradorias e a advocacia não poderiam ser alijadas da construção de um processo administrativo tributário justo que, relembrando o Eduardo Costa, não é “da” (pertencimento) administração fazendária, mas tramita “na” (localização) administração fazendária. A advocacia privada e a advocacia pública juraram defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Podem e devem fazer parte da estrutura judicante administrativa.
Não é por demais lembrar que as normas e regras postas são impessoais, de modo que estarão à disposição de governos bem intencionados, mas também de governos mal intencionados que venham a assumir o poder em algum momento. Logo, devem guardar a devida preocupação com o pior.
O processo administrativo fiscal é ”o mais técnico e célere ambiente de proteção do indivíduo”, sendo inaceitáveis regras que tentem proteger da lei os ímpetos fiscais autoritários, tal como o exemplificado neste artigo e que retrata conduta nada incomum nas administrações tributárias pelo país. Espera-se, novamente, que o PLP 108 seja ajustado aos bons princípios norteadores destes novos tempos.
Fonte: VALOR