Com a promessa da almejada simplificação tributária, o Congresso Nacional aprovou a chamada reforma tributária sobre o consumo (Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023), a qual, apesar do apelido, alterou de forma substancial o sistema tributário como um todo[1].
Um dos diversos desafios da reforma foi o da instituição de um sistema não cumulativo pleno quanto à possibilidade de creditamento dos novos tributos (IBS e CBS), independentemente do regime de tributação escolhido pelo contribuinte (lucro real ou presumido), de modo a extinguir as dificuldades hoje enfrentadas com relação ao PIS/Pasep e à Cofins, IPI e ICMS, em que a metodologia varia entre sistemática do crédito “financeiro”, “físico” e “misto”[2], respectivamente.
A ideia estabelecida pelo novo modelo, até mesmo para justificar o exorbitante aumento das alíquotas, é de que todas as aquisições pela pessoa jurídica gerem crédito, exceto as consideradas de uso e consumo pessoais expressamente previstas na lei complementar que disciplinará o IBS/CBS e as demais hipóteses dispostas na própria Constituição Federal.
A premissa passaria a ser: o que não estiver previsto de forma expressa na lei poderá ser deduzido, diferentemente do que verificamos no sistema atual.
Em outras palavras, buscou-se afastar os subjetivismos inerentes ao sistema atual, bem como as complexidades burocráticas, requisitos e prazos extensos para o reconhecimento dos créditos, permitindo-se o creditamento integral do tributo do elo anterior da cadeia, garantindo-se, assim, a efetiva não incidência em cascata e a menor onerosidade para o consumidor/destinatário final (que realmente arca com o ônus financeiro).
Todavia, sabe-se que a complexidade e os interesses políticos e econômicos envolvidos no processo legislativo da já aprovada EC 132/2023 e das leis complementares que regulamentarão a Contribuição sobre Bens e Serviços e o Imposto sobre Bens e Serviços podem trazer riscos à implementação de um sistema verdadeiramente neutro e que garanta o respeito à não cumulatividade.
O problema central reside na investigação da real capacidade da reforma tributária em promover uma tributação mais justa e menos onerosa para os contribuintes, com a efetivação da não cumulatividade ampla. Será que as mudanças legislativas realmente garantirão esse objetivo?
Partindo do campo constitucional, observa-se, da leitura dos artigos 156-A, §1º, inciso VIII, e 195, § 16º, da Constituição Federal, que referidos tributos serão pautados pela neutralidade fiscal[3] e que a não cumulatividade ampla realmente foi confirmada sobre todas as operações nas quais o contribuinte seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviços, com exceção das aquisições de itens de “uso ou consumo pessoal”, especificados em lei complementar, além das demais hipóteses prescritas na própria Constituição Federal.
O PLP 68/2024, que atualmente se encontra para votação no Senado, aparentemente cumpriu o seu papel de elencar esses itens que não serão deduzidos da IBS/CBS (IVA dual). O artigo 29 é categórico ao estabelecer quais itens são considerados de “uso e consumo” pessoais:
Art. 29. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição dos seguintes bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal, exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte:
I – joias, pedras e metais preciosos;
II – obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico;
III – bebidas alcoólicas;
IV – derivados do tabaco;
V – armas e munições; e
VI – bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.
A primeira indagação que surge a partir da leitura deste dispositivo é se referida lista seria exaustiva ou exemplificativa.
A nosso entender, como o texto constitucional determinou que lei complementar especificasse quais seriam as exclusivas aquisições de bens de uso e consumo pessoais que não irão gerar crédito, e assim o Congresso está fazendo no PLP 68 – ao indicar esses itens sem citar o termo “rol exemplificativo” –, compreende-se se tratar de uma lista taxativa.
Some-se a isto, ainda, que o espírito da reforma tributária (anteriormente mencionado) é o de simplificar o sistema tributário, justamente para encerrar com todas as dificuldades enfrentadas com os chamados tributos indiretos e diminuir a litigiosidade perante o Judiciário.
Tanto é verdade que, na redação do artigo 145, § 3º, da Constituição Federal, o Constituinte Derivado expressamente fez constar que o “Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade (…)”. Afinal, qual seria a razão para substituir um sistema complexo por outro tão complicado quanto? Para além disso, uma das justificativas utilizadas para defender a elevada alíquota base de IBS/CBS (possivelmente com o maior IVA do mundo) é a da possibilidade do creditamento amplo.
Também é importante destacar que a redação dada pela Emenda Constitucional expressamente consigna que as exceções a não cumulatividade apenas podem estar previstas em lei complementar e na própria Constituição. Assim, eventual Instrução Normativa (Parecer, Solução de Consulta ou outro Instrumento Normativo Tributário) elaborada pelo fisco, incluindo novos bens e serviços nas exceções à apropriação de crédito, seria indiscutivelmente inconstitucional, além de ferir, como dito, o próprio intuito da reforma tributária.
[1]Não é escopo deste breve artigo, mas a reforma também tratou de tributos não relacionados ao consumo, como o ITCMD, IPVA, ITBI e IPTU.
[2]Sistemática do crédito físico: apenas gerariam créditos os insumos que materialmente integrassem o produto final.
Sistemática do crédito financeiro: é possível se creditar de todas as despesas que se agregam financeiramente ao produto.
[3]“Deve-se buscar, ao máximo possível, igualar a carga tributária de situações similares”, “visando a garantir um ambiente de igualdade de condições competitivas”SCHOUERI, Luís Eduardo.Direito tributário. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 382.
Fonte: JOTA