O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou ontem a análise de uma discussão importante para os municípios: se incide ISS sobre operações de industrialização por encomenda, quando ocorrerem como etapa intermediária da cadeia produtiva da mercadoria. O julgamento do que as prefeituras tratam como a sua “tese do século” foi suspenso, por um pedido de vista, mas já há uma maioria favorável aos contribuintes — para a incidência de ICMS.
A discussão começou no Plenário Virtual, em 2023, onde seis ministros já tinham votado para afastar a cobrança do tributo municipal “quando o objeto é destinado à industrialização ou à comercialização”. Eles também já concordavam que é preciso limitar em 20% as multas moratórias nos processos fiscais. O caso está em repercussão geral, portanto, vincula todo o Judiciário.
Também votou ontem o ministro Cristiano Zanin, que acompanhou o relator, o ministro Dias Toffoli. O placa está em 7 a 1 em favor dos contribuintes. Toffoli manteve o voto para cancelar a execução fiscal movida pelo município de Contagem, de Minas Gerais, contra a ArcelorMittal, maior produtora de aço do Brasil (RE 882461 ou Tema 816).
O caso discute se incide o ISS ou ICMS e o IPI nessas operações. Essa é considerada a “tese do século” para os municípios, segundo o procurador do Rio de Janeiro Ricardo Almeida, que representa a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf) no caso. Para as companhias, pode valer mais a pena a incidência do ICMS, mesmo com alíquota maior, pois existe a possibilidade de acúmulo de crédito na cadeia produtiva e uso de benefícios fiscais.
O caso em análise chegou ao STF em 2015, por meio de um recurso da ArcelorMittal contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) que manteve sentença e permitiu tributar pelo ISS a atividade de “corte longitudinal e transversal de bobinas de aço”, prevista na Lei Complementar (LC) nº 116/2003, que regulamentou o tributo.
Toffoli, porém votou pela reforma do acórdão. Para ele, “se o bem retorna à circulação ou a nova industrialização após a industrialização por encomenda, tal processo industrial representa apenas uma fase do ciclo econômico da encomendante, não estando, portanto, a industrialização por encomenda sujeita ao ISS”.
Ele entendeu que a LC nº 116/2003 “deformou o critério material do ISS e invadiu, no ponto, competência tributária da União, provocando, ademais, efeito cumulativo relevante em imposto sobre a produção”. Relembrou, em seu voto, a jurisprudência do Supremo, especialmente um julgamento de 2011 que já havia afastado a incidência do ISS sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens (ADI 4389).
No Plenário Virtual, tinham seguido o entendimento do relator os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Acompanharam com ressalvas os ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, que divergiram apenas da proposta de modulação (restrição dos efeitos).
Nos autos, a ArcelorMittal defende que os cortes das bobinas fazem parte do “ciclo industrial siderúrgico”, sendo uma “etapa intermediária da cadeia de circulação, entre a produção do aço bruto e sua destinação à venda”.
A companhia, que teve lucro líquido de US$ 928 milhões no primeiro trimestre de 2024, diz que a multa de R$ 13,1 mil aplicada por não pagar o ISS “viola a proporcionalidade, a razoabilidade e a vedação do confisco” e teria “caráter arrecadatório”.
Já o município de Contagem defende nos autos que a autuação tem amparo tanto na lei complementar quanto na Lei Municipal nº 1.611/1983. Para a prefeitura, o requisito para a incidência é que as atividades sejam exercidas em bens de terceiros.
Há ainda a discussão, que estava no Plenário Virtual mas não foi trazida na sessão de ontem, sobre a modulação dos efeitos. Toffoli propôs a restrição pelas inúmeras atividades que foram “indevidamente” tributadas pelo ISS por 18 anos. Para ele, não modular a tese faria com que muitos contribuintes pleiteassem, nos mais de 5.500 municípios do Brasil, a repetição de indébito tributário, “o que poderá não só afetar as finanças municipais, mas também provocar o ajuizamento de diversas ações judiciais”.
Ele vedou, portanto, a restituição do ISS para quem já recolheu o imposto e vedou a cobrança do IPI e do ICMS sobre os mesmos fatos geradores. Ficariam ressalvadas, porém, as ações judiciais em curso e as hipóteses de comprovada bitributação — neste caso, o contribuinte teria direito à restituição do ISS e não do IPI/ICMS. Para aqueles que não recolheram ISS e ICMS/IPI, incidiria IPI ou ICMS sobre os fatos geradores ocorridos até a véspera da publicação da ata de julgamento.
Fux, que acompanhou a tese principal, apenas discordou desse ponto. Para ele, não é possível excluir a incidência do IPI, porque isso não foi questionado pelo contribuinte.
Para o advogado Tiago Conde, sócio do Sacha Calmon Misabel Derzi Advogados, que representa a ArcelorMittal no caso, é o ICMS que deve incidir sobre a operação. “É uma mercadoria que estou mandando para o Estado. Se fosse serviço, ela viria pronta e acabada, mas não é o caso. O produto volta para a empresa para ser aprimorada”, diz. De acordo co ele, não haveria grandes impactos para os cofres públicos, por conta da modulação proposta. “Toffoli protege o município.”
Nina Pencak, sócia do Mannrich e Vasconcelos Advogados e representante da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) no caso, diz o que o interesse da entidade no processo é a discussão sobre a limitação das multas. Na visão dela, deve ser respeitado o princípio constitucional da dosimetria para as multas fiscais. “As multas são fixas, não têm como base a conduta do contribuinte”, afirma. “O teto de 20% é o entendimento majoritário do Supremo e eles reafirmam o Tema 214”, adiciona a tributarista.
Já Ricardo Almeida entende que a tese não está perdida. Na sessão, ele pediu o reinício do julgamento, mas isso não foi acatado pelos ministros. Segundo ele, se for permitida a não incidência do ISS, haverá dificuldade de fiscalizar a destinação do produto, se para o consumidor final ou para um intermediário, o que é um “cheque em branco para a sonegação fiscal”.
“Esse critério da destinação na cadeia produtiva é impraticável de ser fiscalizado”, afirma o procurador, citando que metade da produção da ArcelorMittal é para exportação, o que dificultaria ainda mais esse controle. Ele também entende que declarar a inconstitucionalidade do item da lei complementar pode ter um efeito em cascata para outros contribuintes pediram a não incidência do ISS para outros produtos.