Empresas afetadas pelo julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a “quebra” de decisões definitivas agora têm munição para afastar multas punitivas e de mora na cobrança de tributos de forma retroativa. Fiscais federais, estaduais e municipais vinham mantendo as penalidades nas autuações fiscais, negando-se a aplicar o entendimento dos ministros. A alegação era, até então, de que o acórdão referente aos embargos de declaração não havia sido publicado – o que ocorreu na semana passada, após espera de quatro meses.
O afastamento das multas só na tese sobre a cobrança de CSLL, pano de fundo do julgamento, reduz o impacto previsto em R$ 1 bilhão (de R$ 7,2 bilhões para R$ 6,2 bilhões), conforme consta no sistema de dívida ativa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Os números foram mencionados pelo ministro decano Gilmar Mendes, no julgamento dos embargos de declaração, em abril.
A decisão da instância mais alta da Justiça, contudo, não estava, até então, sendo seguida, de acordo com tributaristas. Os autos de infração vinham sendo enviados de forma automática com multas e sem respeitar as regras de anterioridade, previstas no Código Tributário Nacional (CTN), que impedem a cobrança imediata de um novo imposto ou aumento dele. Como a decisão do STF tem força de lei, afirmam advogados, deve-se respeitar o prazo de 90 dias ou um ano para se exigir a cobrança.
Com a publicação do acórdão, porém, as companhias podem apresentar a prova da decisão e questionar as penalidades aplicadas pelos fiscais. “É um reforço de argumento do contribuinte”, afirma o advogado Luiz Antonio Bettiol, da Bettiol Advocacia, que representa a Braskem em uma das ações julgadas pelo STF. De acordo com ele, como a Braskem tem sentença definitiva afastando incidência de CSLL desde 2003, mas decidiu recolher o tributo, não sofrerá impactos.
Em fevereiro de 2023, o STF decidiu, por maioria, que sentenças tributárias transitadas em julgado deixam de ter efeito sempre que houver um julgamento posterior dos ministros em sentido contrário, em repercussão geral ou com efeito erga omnes, como em ação direta de constitucionalidade (RE 955227 e RE 949297). Antes a “quebra” não ocorria de forma automática. Era preciso entrar com uma ação rescisória, que prescreve em dois anos e pode não ser aceita pela Justiça.
No caso da CSLL, a cobrança foi declarada constitucional pelo STF em 2007 (ADI 15). Desde aquele ano, o imposto seria devido, mesmo para quem tinha sentença afastando o recolhimento. As empresas queriam, no julgamento dos embargos, que a decisão só valesse a partir de 2023, não retroagindo a 2007. Mas o pedido foi negado.
A “vitória” dos contribuintes foi afastar pelo menos as multas, segundo tributaristas. Medida que não estava sendo observada pelas autoridades fiscais. O tributarista Anderson Mainates, sócio do Cascione Advogados, tem cinco casos no escritório em que foram cobradas multas e não houve aplicação da anterioridade. Dois deles envolvem a CSLL e outros três são de uma tese afetada pela coisa julgada, envolvendo a cobrança de ISS sobre contratos de franquias, que foi mantida pelo Supremo, em maio de 2020 (RE 603136).
Segundo Mainates, a exigência do ISS para seus clientes, que tinham decisão favorável definitiva, só poderia iniciar em janeiro de 2021, pela anterioridade anual. Após recurso administrativo, ele conseguiu fazer com que a regra fosse cumprida, o que resultou, em um dos casos, em uma redução de um terço da cobrança de R$ 30 milhões. “O segundo pedido é a revisão para afastar as multas”, completa Mainates, que já apresentou essa argumentação no processo contra a prefeitura de Barueri.
“Não conseguimos cancelar as multas. Os fiscais estavam muito resistentes, dizendo que o acórdão não tinha sido publicado e em abril só saiu a decisão de provimento em si, sem maiores detalhes”, afirma. A multa equivale a cerca de 15% do valor restante no auto de infração. Outros motivos que os fiscais usaram para manter a penalidade foram que “o contribuinte já conhecia sua situação de devedor” e que ainda não houve o trânsito em julgado nos temas 881 e 885 (coisa julgada).
No acórdão, a justificativa para o relator, ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, afastar as multas foi a “ausência de dolo ou má-fé na conduta daquele que deixou de recolher a contribuição nessas circunstâncias”. Pelo menos outras 15 teses serão impactadas pela decisão, como incidência de ICMS sobre venda de veículos (RE 1025986) e contribuição social sobre terço de férias (RE 1072485). Elas foram elencadas no voto do ministro Dias Toffoli.
O acórdão trouxe outra clareza: o recorte temporal para o afastamento das multas. Elas não podem ser exigidas para quem tinha sentença favorável transitada em julgado e cujo fato gerador é até 13 de fevereiro de 2023, data do julgamento de mérito da tese. “A multa tem caráter punitivo e o contribuinte estava acobertado por decisão favorável, não teve conduta errada. É diferente dos juros e correção que foram mantidos, porque eles só recompõem o valor”, diz o tributarista Anderson Mainates.
Para a tributarista Ariane Guimarães, sócia do Mattos Filho que também atua no caso da CSLL, mas pela Têxtil Bezerra de Menezes (TBM), juízes têm sido mais abertos em afastar as multas em alguns casos. “Mas não é uma uniformidade”, afirma. No âmbito administrativo, é praxe os autos de infração chegarem com multa. “Como não tinha nada na legislação para afastar [as multas], todas as cobranças, a partir do não pagamento tempestivo do tributo, devem ser acompanhados de multa”, completa Ariane.
Agora, diz, “isso vai ser definitivo, porque a própria procuradoria não deve mais recorrer”. Caso haja resistência, ela recomenda entrar com uma reclamação no próprio Supremo. “Se chegaram [com as multas], não deveriam, porque estão contrários à decisão do Supremo.” Na visão dela, a tese da coisa julgada vale para outros temas tributários, não só da CSLL. E o julgamento de mérito, em fevereiro de 2023, é que deve ser considerado como “ponto de surpresa”.
Um caminho que as empresas devem buscar, segundo o advogado Luiz Antonio Bettiol, para pagar o principal, é parcelar a dívida. “Cada empresa pode negociar, pela previsão legal do parcelamento de débitos em atraso”, diz. Além disso, daqui para frente, acrescenta, é preciso dobrar a atenção quanto aos julgamentos do STF. “Além de acompanhar o Poder Legislativo, tem que acompanhar o Supremo, porque a decisão tem a mesma força de lei criadora do tributo.”
Procuradas pelo Valor, a PGFN e a Receita Federal não deram retorno até o fechamento da edição.
Fonte: VALOR