Com a crescente globalização, a sociedade sentiu a necessidade de ampliar suas relações comerciais para além de seu território nacional. Uma das consequências deste movimento foi o emergente conflito de competência entre duas ou mais nações interessadas em tributar determinado fato ou operação que passasse por seu território, mais conhecidas como situações “cross-border”.
Para o direito interno, a legislação tende a prever regras que solucionem os conflitos de competência entre os entes tributantes, os quais devem se submeter ao respectivo ordenamento jurídico. Ocorre que, no direito tributário internacional, ambas as entidades envolvidas na relação são dotadas de “soberania” sobre seu território. Ou seja, cada Estado detém o poder de gerir seu território segundo as suas próprias regras e, ao mesmo tempo, não se submeter a normas impostas por estados terceiros.
Assim, por se tratar de uma relação entre entidades soberanas, para que não haja conflito de competência, é necessário que as partes renunciem de parte de seu respectivo poder e convencionem aquele que será competente para tributar eventual fato ou operação.
Com isso, surgem os acordos para evitar a dupla tributação sobre a renda (ADT), cujo objetivo é justamente positivar esse recorte feito na competência dos Estados contratantes, de modo a evitar uma oneração excessiva sobre o contribuinte, obrigando-o a submeter um mesmo fato à tributação para dois entes distintos (bitributação).
Por um lado, esse comportamento favorece o contribuinte, pois reduz o custo de suas operações, e, por outro lado, não gera grandes prejuízos aos Estados contratantes, pois evita o desincentivo ao comercio internacional.
Um elemento interessante do direito tributário internacional é a aproximação entre sistemas jurídicos distintos, o que pode resultar até mesmo na internalização de conceitos e modelos internacionais. Um exemplo disso foi a adoção do conceito de cláusula de nação mais favorecida (most favoured nation clause — MFN) nos ADTs firmados pelo Brasil.
Em linhas gerais, a mencionada cláusula foi criada como um mecanismo de garantia da segurança e igualdade entre os países que estão dentro do seu alcance.
Mesmo com o seu reconhecimento e a sua utilização nos acordos para evitar a dupla tributação da renda, a realidade brasileira é um pouco distinta da maioria dos países que também se utilizam da cláusula MFN, o que exige um maior cuidado sobre certos aspectos, de modo a evitar exigências fiscais descabidas.
O presente artigo busca discorrer sobre: a promoção da não discriminação entre as nações; como se dá a aplicação da cláusula MFN no contexto brasileiro; e as considerações finais decorrentes desse estudo.
Promoção da não discriminação entre as nações
A origem da cláusula de nação mais favorecida se deu em 1947 com a criação do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (Gatt/47). Ela serviu de marco introdutório para que o princípio da não discriminação se mostrasse presente nas relações internacionais.
A cláusula MFN veio a ser positivada no artigo 1º, do Gatt/94, e, em suma, garante a aplicação para o estado membro de forma automática e incondicional de quaisquer benefícios, vantagens, isenções ou imunidades tributárias garantidas por outro Estado membro a um Estado terceiro. Isso faz com que não subsista um tratamento tributário desigual entre os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) quando se encontrarem em situações semelhantes.
Não obstante, não se trata de uma cláusula de aplicação absoluta, mesmo quando envolver operações entre partes signatárias do Gatt. Um exemplo disso são as operações de investimento, as quais demandam acordos autônomos entre os países (BIT — bilateral investment treaties).
Trazendo para uma abordagem prática, o objeto e a forma de interpretação da clausula MFN podem ser encontrados, por exemplo, na conclusão proferida pelo Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio ao mediar uma disputa entre o Canadá, o Japão e a Comunidade Europeia[1]. Naquela oportunidade, o Japão e as Comunidades Europeias questionaram uma isenção criada pelo Canadá para a importação de certos automóveis, ônibus e outros veículos comerciais, mas somente se cumpridos certos requisitos previstos em lei.
Ficou entendido que a referida regra isentiva estava em desacordo com as disposições do Gatt, pois condicionava o benefício à fabricantes específicos.
Aplicação da cláusula MFN no contexto brasileiro
Mesmo o Brasil não sendo signatário do Gatt, a cláusula de nação mais favorecida não é estranha aos acordos internacionais firmados pelo Brasil. Em diversas situações, é possível verificar a utilização de cláusula MFN nos acordos para evitar a dupla tributação sobre a renda por uma convenção entre os entes contratantes.
Aqui a aplicação da cláusula não tem a sua origem no Gatt, mas sim no artigo 24 da Convenção Modelo da OCDE que lida com a não discriminação entre os países membros. Ainda que o artigo 24 trate da não discriminação, ele não pode ser entendido como uma cláusula MFN per se, já que o dispositivo trata de algumas hipóteses taxativas de não discriminação, como por exemplo a vedação à discriminação em razão da nacionalidade.
A distinção entre o artigo 24 da Convenção Modelo da OCDE e o artigo 1º do GATT foi objeto de análise por Alberto Xavier ao discorrer sobre os elementos que compõem o princípio da não discriminação, segundo o modelo da OCDE. O autor analisa o referido princípio através de seus elementos objetivo e subjetivo: não poderá ser dado tratamento diferenciado para situações de fato semelhantes (critério objetivo), o que se aplica a pessoas físicas e jurídicas estrangeiras e as suas filiais e subsidiárias (critério subjetivo). [2]
Verifica-se que enquanto o modelo da OCDE aborda o princípio por uma ótica negativa (é vedado a tributação desigual entre as partes contratantes em razão da nacionalidade), o Gatt o aborda sob uma perspectiva positiva (deve ser garantido tratamento tributário igualitário entre os países membros).
Mesmo que também não seja um dos países membros da OCDE, o Brasil se utiliza da Convenção Modelo como base para firmar seus próprios acordos para evitar a dupla tributação. Dessa forma, os ADTs costumam indicar em seu artigo 24 sobre a vedação às condutas discriminatórias. Depreende-se da leitura do referido artigo, que de fato a não discriminação ali tratada diz respeito à vedação de imposição de condutas diferentes ou mais gravosas a contraparte do acordo em razão de nacionalidade (postura negativa).
Felizmente, não foi necessário adentrar nas distinções entre a cláusula MFN (advinda do GATT) e as práticas que visem a não discriminação (advinda da OCDE) nos ADTs. Isto pois, o Brasil tem o costume de indicar na seção do “protocolo”, dispositivos complementares ao respectivo ADT, entre os quais, existe uma cláusula MFN propriamente dita.
Recentemente, a Receita Federal tem se debruçado sobre questionamentos de alguns contribuintes sobre a aplicação das cláusulas MFN nos ADTs firmados pelo Brasil.
Um exemplo de aplicação da cláusula MFN ocorreu em 22 de setembro de 2021, quando foi publicada a Solução de Consulta Cosit nº 150 pela Receita.
A consulta trata de um processo de alienação de participações societárias detidas por uma pessoa jurídica portuguesa para outra pessoa jurídica brasileira.
De acordo com o ADT Brasil-Portugal, o artigo 13, §4º, determina que os ganhos decorrentes da alienação de ações de sociedades brasileiras por residentes em Portugal estariam sujeitos ao imposto de renda retido na fonte no Brasil às alíquotas de 15% a 22,5%.
Ocorre que, a empresa portuguesa (consulente) suscitou a aplicação do item 6 do protocolo do acordo, que determina a aplicação automática de alíquotas reduzidas aplicadas pelo Brasil a outros países que não situados na América Latina nessas situações.
Com a finalidade de reduzir a carga tributária sobre os ganhos decorrentes da alienação das participações societárias, a empresa portuguesa requereu a aplicação da tributação garantida à Israel quando se encontrasse na mesma situação (vide o artigo 13, §3º, Decreto nº 5.576/2005 — ADT Brasil-Israel [3]).
Como resultado, a tributação sobre a operação de alienação sofreria uma limitação máxima de 15% para a alíquota de IRRF quando a empresa alienante detivesse mais de 10% das ações da empresa alienada.
Por fim, a referida Solução de Consulta reconheceu o requerimento da empresa portuguesa e corroborou o seu entendimento de que deveria ser aplicado de forma imediata e automática o mesmo tratamento tributário garantido às empresas em Israel à empresa portuguesa.
Mais recentemente, foi publicada em 29 de maio de 2024 a Solução de Consulta COSIT nº 147 em resposta ao questionamento formulado por uma empresa belga que havia firmado um contrato de compra e venda de quotas para adquirir até 40% das quotas de uma sociedade limitada brasileira.
O que se destaca desta Solução de Consulta foi a busca pela consulente da aplicação do mesmo entendimento firmado pela Solução de Consulta Cosit nº 150/2021 acerca da cláusula MFN presente no ADT Brasil-Portugal.
O trabalho do auditor-fiscal da Receita não foi o de verificar se a disposição no item 2 do Protocolo do ADT Brasil-Bélgica se tratava de uma cláusula MFN, mas sim se as cláusulas nos tratados entre Brasil e Bélgica e Brasil e Portugal seriam substancialmente iguais, ao ponto de produzirem os mesmos efeitos:
Após analisar a redação utilizada em ambos os ADTs, a Receita entendeu que os dispositivos eram de fato semelhantes, de modo que o resultado foi pela aplicação do mesmo raciocínio utilizado na Solução de Consulta Cosit nº 150/2021 para limitar a tributação do ganho de capital pela empresa belga à alíquota de 15% do IRRF.
Considerações finais
Como conclusão, fica visível a diferença conceitual e prática entre a conduta negativa de que trata o artigo 24 dos ADTs e a conduta positiva dos itens nos Protocolos que tratam da cláusula MFN. Enquanto um tem o condão de limitar comportamentos, o outro visa a garantia de direitos às partes contratantes.
Outrossim, verifica-se da solução de consulta que envolve o ADT Brasil-Bélgica que o fato da cláusula MFN não se respaldar em acordos multilaterais (como o Gatt, por exemplo), mas sim em acordos bilaterais (os ADTs), torna necessária a verificação da sua aplicação e seus efeitos conforme cada caso concreto.
Ainda que não seja possível afirmar com certeza que esse procedimento gera prejuízos ao contribuinte, nos parece que ele retira a característica de aplicação imediata inerente à cláusula MFN padrão, além de gerar uma insegurança jurídica com a possibilidade do reconhecimento por parte do Fisco de que determinada norma não configura uma cláusula MFN, mantendo-se assim uma tributação mais onerosa ao contribuinte.
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Referências
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
BRASIL. Solução de Consulta COSIT nº 150, de 22 de setembro de2021. Publicado no DOU de 27/09/2021, seção 1, página 51. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=120690
BRASIL. Solução de Consulta COSIT nº 147, de 27 de maio de 2024. Publicado no DOU de 29/05/2024, seção 1, página 85. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=138367
BRASIL. Decreto nº 72.542, de 30 de julho de 1973. Convenção entre Brasil e Bélgica Destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Relação ao Imposto sobre a Renda. Publicado no DOU de 02/08/1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D72542.html
BRASIL. Decreto nº 4.012, de 13 de novembro de 2001 Convenção entre Brasil e Portugal Destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Relação ao Imposto sobre a Renda. Publicado no DOU de 14/11/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D4012.htm
BRASIL. Decreto nº 5.576, de 8 de novembro de 2005. Convenção entre Brasil e Israel Destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Relação ao Imposto sobre a Renda. Publicado no DOU de 09/11/2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/D5576.htm
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WORLD TRADE ORGANIZATION – WTO. WT/DS139/AB/R; WT/DS142/AB/R. Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=Q:/WT/DS/139ABR.pdf&Open=True
MÜLLER, Carolina. MELOTTI, Giuseppe. Levando a cláusula de tratamento nacional a sério. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-05/muller-melotti-levando-clausula-tratamento-nacional-serio
ATHAYDE, Amanda. MARSSOLA, Júlia. A evolução da política brasileira de investimentos e os acordos de cooperação. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-02/opiniao-evolucao-politica-brasileira-investimentos
MARSSOLA, Júlia. O que é o tratamento da nação mais favorecida e qual sua importância para os acordos internacionais de investimentos? Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/303520/o-que-e-o-tratamento-da-nacao-mais-favorecida-e-qual-sua-importancia-para-os-acordos-internacionais-de-investimentos
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KAPOOR, Deepak. The MFN clause in tax treaties is jeopardising tax revenue for lower-income countries. International Centre for Tax & Development. Disponível em: https://www.ictd.ac/blog/mfn-clause-tax-treaties-jeopardising-tax-revenue-lower-income-countries/
BERGER, Robyn. HORAK, Wally. Tax Court upholds most favoured nation clause in South Africa and Netherlands tax treaty. Bowmans. Disponível em: https://www.bowmanslaw.com/insights/tax/tax-court-upholds-most-favoured-nation-clause-in-south-africa-and-netherlands-tax-treaty/
[1] Relatório do Órgão de Apelação no litígio Canada – Certain Measures Affecting the Automotive Industry (Canada – Autos), Demandante: Japão e Comunidades Europeias, WT/DS139/AB/R e WT/DS142/AB/R, parag. 84: “Paragraph 84 – The object and purpose of Article I:1 supports our interpretation. That object and purpose is to prohibit discrimination among like products originating in or destined for different countries. The prohibition of discrimination in Article I:1 also serves as an incentive for concessions, negotiated reciprocally, to be extended to all other Members on an MFN basis.” Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=Q:/WT/DS/139ABR.pdf&Open=True
[2] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2015. pp. 245-251.
[3] Brasil. Presidente da República. Decreto nº 5.576/2005: “Artigo 13 (…) 3. Os ganhos obtidos por um residente de um Estado Contratante da venda, troca ou outra forma de disposição, direta ou indiretamente, de ações de uma sociedade residente do outro Estado Contratante poderão ser tributados nesse outro Estado, mas somente se o residente do primeiro Estado mencionado detiver a propriedade, direta ou indiretamente, a qualquer tempo no período de doze meses anterior a tal venda, troca ou outra forma de disposição, de ações dando direito a 10 por cento ou mais do direito de voto na sociedade. Todavia, o imposto assim cobrado não poderá exceder 15 por cento do montante bruto de tais ganhos. A expressão “detiver a propriedade indiretamente”, conforme usada neste parágrafo, inclui, mas não está limitada, a propriedade por uma pessoa relacionada.”
Fonte: CONJUR