O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reduziu a base de cálculo do ITCMD em uma doação de cotas de sociedade fechada. Por maioria, a 9ª Câmara de Direito Público adotou o valor patrimonial contábil de uma holding familiar, e não o venal ou o de mercado, como defendia a Fazenda paulista, o que aumentaria o valor do imposto em quase R$ 200 mil.
A operação envolve doação de cotas de filhas para um pai, em abril de 2023. A peculiaridade é que a holding tinha patrimônio líquido (diferença entre ativos e passivos) de R$ 4 milhões, menor que o capital social, de R$ 6 milhões, o que impediu o recolhimento do tributo no sistema da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP). Por isso, o patriarca entrou com o mandado de segurança para conseguir pagar o imposto usando o valor patrimonial como base de cálculo.
A divergência decorre das diversas interpretações a respeito da previsão legal a ser aplicada. Enquanto o Estado entende que deve ser a Constituição Federal, que institui o ITCMD e seu fato gerador, e o Código Tributário Nacional (CTN), que determina a base de cálculo, os contribuintes entendem que a Lei Estadual 10.705/2000 é que deve ser considerada nessa situação.
Na lei, redigida e posteriormente regulamentada pelo Estado de São Paulo, o artigo 9º estabelece como base para a incidência “o valor venal do bem ou direito transmitido”, assim entendido como “o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação”. Porém, no artigo 14, diz que será admitido o valor patrimonial quando as ações não forem “objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 dias”. É nesse dispositivo que se agarram os contribuintes.
Para o desembargador escolhido para relatar o acórdão, Décio Notarangeli, não há “menção expressa no ordenamento jurídico referente ao conceito de valor patrimonial”, mas a “jurisprudência do tribunal concluiu que a base de cálculo do ITCMD é o valor patrimonial contábil líquido”. No caso, esse valor é “o produto da divisão do valor em reais do patrimônio líquido pelo número de quotas, segundo a variação da Ufesp [Unidade Fiscal do Estado de São Paulo] da data do balanço patrimonial anterior até o momento do fato gerador”, diz Notarangeli (processo nº 1015171-63.2023.8.26.0037).
Ele afastou a tese do Estado de São Paulo que busca a adoção do valor patrimonial real, fruto do “balanço de determinação”. Esse balanço, segundo Notarangeli, tem como finalidade a “reavaliação dos ativos e a conferência dos lançamentos”, mas não tem repercussões tributárias. “O que o Fisco pretende não tem respaldo na lei tributária em sentido estrito”, afirma o desembargador.
Ele ainda diz que, no caso, “não se trata de doação direta de bens imóveis e móveis integrantes do ativo imobilizado, mas apenas de transmissão de cotas societárias”. No voto, também cita precedentes do TJSP, que vem adotando esse entendimento desde 2022, nas 8ª, 9ª, 10ª e 13ª Câmaras de Direito Público (processos nº 1000481-49.2023.8.26.0483 e nº 1005713-45.2023.8.26.0482).
Para a tributarista Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados, que defendeu o contribuinte no processo, é difícil apurar o valor de mercado de uma holding familiar, pois não há ações negociadas em bolsa e, muitas vezes, não há intenção de venda do patrimônio. Ela reforça que não existe ilegalidade na constituição desse tipo de estrutura.
“Nada mais é do que um instrumento de planejamento e organização”, diz. “É muito mais fácil transitar entre a família cotas e ações do que transitar vários imóveis, carros e veículos. Fica muito mais fácil administrar”, adiciona a advogada.
Na visão dela, as discussões judiciais contra as holdings familiares se inserem em um movimento de “sanha arrecadatória” dos Estados nos últimos anos. “Apesar de estar tudo na lei e na jurisprudência, São Paulo não se cansa, não pode deixar passar um caso, porque qualquer caso vira mais um precedente contra ele”, afirma. Essa atitude, porém, traz insegurança para os contribuintes. “Sempre traz uma grande incerteza tanto para os escritórios que trabalham nessa área quanto para as famílias. A gente não consegue falar que não vai ter risco”, conclui.
Marcelo Bolognese, sócio do Bolognese Advogados, diz que o TJSP tem firmado entendimento de que o valor patrimonial líquido, que nada mais é do que o patrimônio líquido, é que deve ser considerado como base de cálculo do ITCMD. “Numa primeira análise, é realmente aquilo que representa a riqueza da empresa, ela vale seu patrimônio líquido”, afirma. Segundo ele, o tribunal não tem admitido qualquer tipo de arbitramento pelo Fisco. “O Fisco pode até não concordar, mas tem que ter uma métrica.”
Além de existirem questionamentos sobre o conceito de valor patrimonial, a Sefaz-SP e contribuintes divergem sobre qual o balanço contábil deve ser considerado para fins de apuração do imposto. Para o Estado, é o balanço mais recente, mesmo que depois do fato gerador, isto é, da própria doação ou transmissão de bens.
Bolognese, porém, diz que o contribuinte pode escolher o caminho menos oneroso. “Na falta de um critério objetivo para dizer qual a base de cálculo do ITCMD, como o contribuinte atualizou o último balanço até o fato gerador, atende aos requisitos da legislação, então para que usar o balanço de determinação se a base seria maior? Como na escolha do lucro real ou presumido, pode se optar pelo caminho menos oneroso, desde que as formas sejam lícitas.”
Em nota ao Valor, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) disse que o acórdão do TJSP não foi unânime e que já interpôs embargos de declaração, ainda pendentes de julgamento. “A tese dos contribuintes contraria as disposições legais sobre a matéria (artigos 9º, parágrafo 1º, 11 e 14, parágrafos 1º e 3º, da Lei Estadual nº 10.705, de 2000, e artigo 38 do CTN)”, afirma.
O órgão cita, no texto, precedentes do TJSP e do Superior Tribunal de Justiça (AREsp 2482953). A decisão do STJ mencionada, porém, não analisou o mérito do recurso, pois incidiu a Súmula 7, que veda o reexame de provas pela Corte.
Fonte: VALOR