O presente artigo se propõe a explorar a incidência da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre remessas ao exterior efetuadas a título de pagamento por direitos autorais, que atualmente é objeto de inúmeros litígios entre fisco e contribuintes, considerando os contornos legais do debate e o posicionamento manifestado em julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Em razão das suas características específicas, também exploraremos as particularidades da incidência da Cide para as obras audiovisuais.
Regras de incidência da Cide e os direitos autorais
A Lei 10.168/00, editada há mais de 20 anos, teve por objetivo o financiamento de programas voltados ao desenvolvimento tecnológico no país, de modo que a contribuição seria devida sobre as remessas efetuadas pelo detentor de licença ou adquirente de conhecimentos tecnológicos de residentes ou domiciliados no exterior.
Um ano após a sua entrada em vigor, foi ampliado o campo de incidência da Cide prevista na Lei 10.168/00 para abranger remessas em remuneração a serviços técnicos, assistência administrativa e semelhantes e de royalties a qualquer título.
Com a finalidade de regulamentar a Cide, o Decreto 4.195/02 listou os tipos de contratos cujos royalties ou cuja remuneração seriam passíveis de incidência da contribuição, quais sejam, aqueles relativos (i) ao fornecimento de tecnologia; (ii) à prestação de assistência técnica, entendidos como serviços de assistência técnica e serviços técnicos especializados; (iii) aos serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes; (iv) à cessão e licença de uso de marcas e, por fim, (v) à cessão e licença de exploração de patentes.
Assim, no tocante à remuneração de direitos autorais, a legislação permite a incidência da Cide sobre contratos envolvendo o pagamento de royalties no fornecimento de tecnologia, bem como na cessão e licença de marcas e patentes.
Contudo, em razão da expressão contida na Lei 10.168/00 de que a contribuição incide sobre pagamentos de royalties “a qualquer título” a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior, as autoridades fiscais federais defendem uma interpretação literal, no sentido de que quaisquer remessas para pagamentos de direitos seriam royalties sujeitos à Cide, enquanto, de outro lado, os contribuintes defendem que o pagamento de direitos autorais não caracteriza royalties, pois são remunerações totalmente distintas na legislação.
Segundo a Receita Federal, as alterações introduzidas em 2002 pela Lei 10.168/00 representam uma nova hipótese de incidência da Cide, autônoma e desvinculada da contratação de tecnologia ou conhecimentos tecnológicos estrangeiros, bastando, para incidência da contribuição, a remessa de royalties a beneficiários situados no exterior.
Nesse sentido, as autoridades fiscais afirmam que a lista de contratos prevista no artigo 10 do Decreto 4.195/02 seria meramente exemplificativa e se apoia na classificação de royalties prevista na legislação do imposto de renda que inclui a exploração de direitos autorais, salvo quando percebidos pelo criador da obra (artigo 22, alínea “d”, da Lei 4.506/64).
Entretanto, entendemos que esse posicionamento não deve prosperar em eventuais disputas sobre o tema, visto que a remuneração por direitos autorais não se confunde com o pagamento de royalties, para o qual a legislação da Cide enumera expressamente os tipos de contrato que envolvem pagamentos dessa natureza, como elencado acima.
Defender um caráter exemplificativo da lista de contratos sujeitos à incidência da contribuição esvaziaria o sentido de se ter uma norma regulamentadora da contribuição, bastando que a legislação da Cide fizesse referência à definição de royalties constante da legislação do imposto de renda.
Além disso, o artigo 149, da Constituição Federal (CF), limitou a materialidade da hipótese de incidência de contribuições sobre o domínio econômico à atuação da União em determinadas áreas. A Cide sobre royalties tem sua materialidade atrelada ao “desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”, de modo que sua cobrança sobre pagamentos efetuados a título de direito autoral carece de referibilidade.
Regras de incidência da Cide e as obras audiovisuais
No que diz respeito especificamente à incidência da Cide sobre remessas ao exterior efetuadas a título de pagamento por direitos autorais de obras audiovisuais, vale ressaltar, ainda, que a Lei 4.506/64 define que o direito de uso ou exploração de películas cinematográficas caracteriza aluguéis, e não royalties.
Esses dispositivos legais evidenciam a opção do legislador em distinguir os pagamentos de remuneração de licenças de obras audiovisuais do conceito de royalties, reservando este último para os demais direitos autorais quando não percebidos pelo próprio autor da obra.
A evidência da separação entre direitos autorais de obras audiovisuais e royalties é manifesta, ainda, no Regulamento do Imposto de Renda de 2018 (RIR/18 – Decreto 9.580/18), que estabelece a incidência do IRRF de 15% de maneira distinta para cada caso. Nesse sentido, o regulamento divide esse tipo de remessa em duas subseções, uma relativa à tributação “das películas cinematográficas” (artigo 764) e outra relativa à subseção “dos royalties” (artigo 767). Se fossem pagamentos da mesma natureza, não haveria razão para prever a incidência do IRRF, à mesma alíquota, em dois dispositivos legais diferentes.
A não incidência da Cide sobre remessas efetuadas a título de direitos de obras audiovisuais também se justifica pela existência de uma contribuição específica para esse setor: a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), prevista na MP 2228-1/01, cuja materialidade encontra amparo no artigo 215 da CF, que garante “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”, além dos artigos 216, § 3º, e 216-A, § 1º, incisos III, XII, e § 2º, inciso VI, todos da CF.
Cenário da jurisprudência sobre o tema
Em que pesem os argumentos expostos acima, no âmbito do Carf, o tema não está pacificado. Em decisão mais recente sobre o tema[1], a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) decidiu, por maioria de votos, que há incidência da Cide sobre pagamentos decorrentes de contratos relativos a direitos autorais, sendo que os tipos de contratos passíveis de tributação pela contribuição, previstos no artigo 10 do Decreto 4.195/02, seriam apenas exemplificativos.
Apesar desse precedente da CSRF, ainda há decisões[2] em vigor (i.e., não reformadas) que afastaram a incidência da Cide sobre direitos autorais, com base em duas razões principais: (i) necessidade de observância da referibilidade, uma vez que a CF indica que os únicos royalties sujeitos à Cide seriam aqueles decorrentes da contratação de tecnologia ou conhecimento tecnológico estrangeiro; e (ii) ausência da inclusão da exploração de direitos autorais no rol do artigo 10 do Decreto 4.195/02 como sujeitos à Cide, o que impediria a exigência da contribuição nesses casos.
Na prática, portanto, a incidência da Cide sobre remessas ao exterior a título de pagamento de direitos autorais permanece um tema controverso, e outros casos ainda devem chegar à CSRF para avaliação.
Outro ponto de destaque sobre o assunto é que, na esfera judicial, existe o Tema 914 do Supremo Tribunal Federal (STF) que está pendente de julgamento em regime de repercussão geral e tratará da constitucionalidade da Cide sobre remessas ao exterior.
De forma mais específica, a descrição do tema a ser analisado é “a delimitação do perfil constitucional da contribuição incidente sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente de contratos que tenham por objeto licenças de uso e transferência de tecnologia, serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes, bem como royalties de qualquer natureza, instituída pela Lei 10.168/2000, e posteriormente alterada pela Lei 10.332/2001”.
Considerando que, com base no que o STF vem reconhecendo em casos de repercussão geral, a Corte possui liberdade para definir a amplitude de seus julgamentos, a definição do Tema 914 pode envolver apenas questões voltadas à constitucionalidade da contribuição ou abranger outras questões também pertinentes às disputas existentes entre fisco e contribuintes, a exemplo da análise sobre a necessidade de os contratos envolverem a transferência de tecnologia, bem como sobre remessas de naturezas específicas como, software, serviços técnicos, direitos autorais, entre outros. Assim, a depender da abrangência da decisão da Corte, deverão ser avaliados os impactos nas disputas envolvendo especificamente remessas para pagamento de direitos autorais.
[1]Acórdão 9303-008.552.
[2]Acórdãos 103-22.021, 303-35.834, 301-34.753, 302-38.763, 3302-011.909, 3401003.833 e 3401003.802.
Fonte: JOTA