Quero iniciar este artigo parabenizando o Conselho Federal de Contabilidade (CRC) de São Paulo e a Receita Federal do Brasil (RFB) pelo evento que organizaram em conjunto sobre “Contabilidade internacional e lucro fiscal”, realizado na sede do CRC em 4 de junho. A excelência e a diversidade de opiniões marcaram um diálogo importantíssimo entre profissionais contábeis e tributários, academia, empresários e autoridades fiscais. A questão de fundo dos debates prática e resumidamente foi: “a contabilidade societária – baseada nos padrões internacionais – seria uma boa base para a tributação da renda?”.
Como foi lembrado em duas exposições, estudos internacionais, incorporados aos estudos brasileiros, sobre o tema distinguem três níveis de relação entre contabilidade e tributação do lucro: (i) dependência total, quando a lei tributária adota integralmente o lucro societário ou comercial (contábil) como base; (ii) independência total, quando o lucro fiscal é apurado sem qualquer relação ou com pouquíssimo contato com o lucro societário (contábil); e (iii) dependência parcial, ou sistema híbrido, quando a legislação tributária parte do lucro societário (contábil) e realiza alguns ajustes para a apuração do lucro fiscal – este é o sistema adotado no Brasil, pelo menos, desde o Decreto-lei nº 1.598, de 1977, com a criação do Livro de Apuração do Lucro Real – LALUR. Aproveitando essa experiência de mais de 30 anos, a última lei geral do imposto sobre a renda – a Lei nº 12.973, de 2024 –, manteve o sistema híbrido no âmbito da adoção das práticas internacionais de contabilidade pelas empresas brasileiras.
Sob o argumento de que o padrão internacional de contabilidade (IFRS) é muito dinâmico e suas recentes atualizações têm aumentado a complexidade da apuração do lucro societário (contábil), a Receita Federal, principalmente, mas não exclusivamente, tem debatido a ideia de caminharmos para uma apuração do lucro fiscal com maior “autonomia” em relação ao lucro societário. Pelas propostas aventadas nesse sentido, o LALUR seria substituído pela apuração de uma demonstração do resultado fiscal (ou do lucro fiscal) – em paralelo à demonstração do resultado do exercício (DRE).
Essa posição encontra adeptos entre os estudiosos tanto da contabilidade como da tributação. O argumento “teórico” que sustenta essa “autonomia” do lucro fiscal diante do lucro societário (contábil) é no sentido de que os relatórios contábeis cumprem uma determinada finalidade, diferente da finalidade da apuração tributária. Seriam, portanto, dois sistemas de informação elaborados com destinatários e objetivos distintos.
Sem querer obviamente esgotar o assunto, mas tão somente contribuir para o debate, pretende jogar algumas luzes sobre esses argumentos.
Em primeiro lugar, com relação à complexidade da escrituração contábil. Como também exposto no mencionado evento, essa tal complexidade tem sido trazida pela evolução das relações comerciais (econômicas). O avanço da tecnologia, e todos os recursos e fomento à criatividade por ele proporcionado, está transformando as relações econômicas e as relações sociais. Como a escrituração contábil não “inventa” essas relações, apenas as registra, acaba por refletir essa complexidade. Nesse sentido, a legislação tributária também precisa estar atenta e perseguir as transformações desses novos tempos.
O argumento mais relevante, na minha percepção, é o segundo: a contabilidade e a tributação têm objetivos distintos. Para avaliá-lo, inicialmente, é preciso identificar a finalidade da contabilidade. De maneira bastante geral (e com a vênia dos doutores nas Ciências Contábeis), podemos resumir afirmando que a escrituração contábil serve a dois senhores: internamente à empresa, a contabilidade gerencial organiza as informações do negócio para as decisões da administração; externamente à empresa, a contabilidade societária (ou financeira) divulga informações para os diversos “stakeholders”: sócios, trabalhadores, fornecedores, financiadores, clientes e, atualmente, sociedade e meio ambiente, para que decisões sejam tomadas, particularmente, decisões sobre se e como serão firmados os relacionamentos com a empresa (decisões de investimento, de compra, de venda, de emprego etc.). O balanço patrimonial e os demais relatórios contábeis evidenciam a mutação patrimonial da empresa, destacando a qualidade e o volume do seu resultado (lucro ou prejuízo).
Considerando que as demonstrações contábeis são importantes para todos os “stakeholders”, por que não seria para o Fisco? Por outro lado, se as demonstrações contábeis evidenciam se o patrimônio da empresa aumentou ou reduziu, apurando lucro ou prejuízo, por que essa movimentação patrimonial não serviria à tributação? Afinal, não é o Fisco também um “stakeholder” – e privilegiado – da empresa, seja como credor do tributo seja, de certa forma, como “sócio”, quando parte do lucro das empresas é destinado ao Erário Público?
Certamente, há determinados registros contábeis que não se enquadram na estrutura da tributação da renda, conforme prevista na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional (CTN), além do que, a legislação tributária pode renunciar à tributação de determinadas rendas ou prever deduções exclusivamente fiscais como incentivos às empresas (por exemplo, a recente Lei 14.871, que autoriza a concessão de quotas diferenciadas de depreciação acelerada para máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos novos destinados ao ativo imobilizado e empregados em determinadas atividades econômicas). Para esses casos, a legislação tributária poderia continuar prevendo os ajustes de adições e exclusões na apuração do lucro real – como é hoje.
Na verdade, uma solução possível para a redução da complexidade e dos ajustes tributários (adições e exclusões) seria estreitar a proximidade entre lucro societário (contábil) e lucro fiscal. Nesse sentido, a legislação tributária poderia passar a incorporar registro contábeis que não firam a delimitação constituição da tributação da renda.
Mais uma vez: parabéns ao CRC de São Paulo e à Receita Federal por incentivarem o debate e o diálogo para a construção de um consenso sobre o assunto.