A Receita Federal permitiu que uma refinaria de petróleo brasileira adote alíquota menor do Imposto de Renda (IRRF) em operações com os Emirados Árabes Unidos (EAU) — país que está na “lista negra” do órgão por ser considerado paraíso fiscal. Na visão da Fisco, mesmo que o país do Oriente Médio esteja em jurisdição de tributação favorecida e a alíquota maior, de 25%, devesse ser aplicada, prevalece o tratado firmado entre os dois países, que afasta a dupla tributação e prevê alíquota de 15% na contratação de serviços técnicos.
O entendimento está na Solução de Consulta nº 110, editada recententemente pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), que vincula todos os auditores fiscais. Segundo tributaristas, a interpretação é importante por seguir a jurisprudência dos tribunais superiores, que determina a prevalência de tratados internacionais sobre a legislação interna. Os EAU são um dos 38 países com quem o Brasil tem acordo para evitar dupla tributação e prevenir a evasão fiscal.
O contribuinte resolveu consultar a Receita para saber qual regra aplicar: a estabelecida no tratado entre os dois países (Decreto nº 10.705, de 2021), que prevê alíquota de 15% na contratação de serviço técnicos com empresas nos EAU, ou a da Lei nº 9.779, de 1999, aliada a uma instrução normativa, que incluíram os Emirados Árabes no rol de jurisdições favorecidas. Para evitar a evasão fiscal, o percentual aplicado seria de 25% do IRRF. Por ter uma posição mais conservadora, a empresa que fez a consulta tem feito a retenção na fonte pela segunda opção.
Ao responder ao questionamento, a Receita afirmou que, mesmo que os tratados não tenham força para revogar a legislação interna, o artigo 98 do Código Tributário Nacional (CTN) assegura que devem ser priorizados. “Os tratados internacionais não revogam a legislação interna. Ela continua válida, porém tem sua aplicação contida pelo tratado internacional. Desse modo, o tratado age limitando a pretensão tributária do Estado”, afirma a Cosit. A Receita reforçou ser preciso cumprir os requisitos do tratado, como comprovar a residência da empresa nos EAU, para usufruir dos benefícios.
Na visão do tributarista Caio Malpighi, do escritório VBSO Advogados, o esclarecimento é relevante, pois ilustra a importância da obediência aos tratados para definir a tributação de remessas ao exterior. “É muito positivo para os contribuintes, porque é um caso em que a empresa está em paraíso fiscal. A regra específica diz que a alíquota aplicada deveria ser majorada”, afirma.
A notícia, acrescenta, é positiva para quem importa serviços do exterior e arca, no contrato, com o ônus da alíquota maior do IRRF. Segundo Malpighi, esses contratos podem se tornar menos onerosos para os contratantes, que já prevendo a retenção, pagam mais caro pelos serviços. Ele também diz que o IRRF é uma forma de simplificar a cobrança de tributos e, nos casos em que há a contratação internacional, é a maneira da Receita tributar a renda de pessoas fora do Brasil.
Apesar do aparente conflito entre as normas, o advogado Renato Coelho, sócio do Stocche Forbes Advogados, afirma que “não há antinomia” entre elas. “Se você não partir do pressuposto que o tratado tem prevalência sobre a lei interna, esvazia o motivo da existência do tratado”, diz ele, lembrando de precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Segundo o advogado, seria sensato remover os Emirados Árabes Unidos na lista de países considerados paraísos fiscais pela Receita, já que o tratado dá tratamento diferenciado. “Há uma incoerência entre o Brasil evitar dupla tributação com determinado país e, ao mesmo tempo, considerar como paraíso fiscal”, afirma Coelho, adicionando que esse tema não teria como vir na solução de consulta.
Ele também entende que, apesar de a Cosit se referir apenas a serviços técnicos, a mesma lógica se aplica para rendimentos de outras naturezas, como pagamento de juros, dividendos ou ganho de capital. “Se vier uma legislação que passe a fazer a tributação de dividendos com alíquota de 20%, o tratado continuaria limitando a alíquota a 15%”, diz. “Não será aplicada a alíquota interna se a alíquota do tratado for inferior”, adiciona.
O tratado foi firmado durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, durante um contexto político de aproximação entre os dois países. “Quando há a aproximação comercial, não é desejável a dupla tributação. Torna a relação onerosa e acaba desincentivando os negócios”, afirma o advogado Caio Malpighi.
Fonte: VALOR