Advogados tributaristas se debruçam desde a noite de quarta-feira sobre o texto do primeiro projeto de lei (PL) que pretende regulamentar a reforma tributária. São essas as regras que permitirão a aplicação da Emenda Constitucional (EC) nº 132, de 2023, que altera o sistema tributário nacional. Porém, após uma primeira análise, especialistas alertam que o texto, se ficar como está, poderá gerar mais judicialização.
Diversos pontos entre os cerca de 500 artigos da proposta do governo foram destacados por terem grande potencial para levar os contribuintes ao Judiciário. Um deles trata da previsão deque a disponibilização de veículos, equipamentos de comunicação, planos de assistência à saúde, educação, alimentação, bebidas e seguros a pessoas físicas deve ser tributada pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) – os dois novos tributos que vão compor o chamado “IVA dual” (artigo 38).
Segundo a advogada Lina Santin, sócia do escritório Salusse Marangoni Parente e Jabur Advogados, o governo diz que com a medida quer inibir a remuneração indireta, mas fere os princípios do crédito amplo e da neutralidade, garantidos pela Constituição. “O bem de uso e consumo pessoal é o que não está relacionado à atividade da empresa”, afirma. “Em relação a seguro e plano de saúde a situação é ainda pior porque o custo é elevado e, hoje, é dedutível do IRPJ e CSLL, por serem despesas operacionais”, diz.
Uma discussão judicial que já existe e deve ser mantida, mesmo após a reforma tributária, se refere à responsabilidade solidária por não pagamento de tributo. O projeto do governo amplia a lista de pessoas, para além das já previstas no Código Tributário Nacional (CTN), que podem ser responsabilizadas pelo descumprimento de obrigações tributárias do contribuinte (artigo 24). Incluiu: o transportador, o leiloeiro, desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos usados para o registro de operações com bens ou serviços.
“Na prática, a fiscalização tem o costume de incluir a maior quantidade possível de responsáveis solidários, o que já gera discussões judiciais”, afirma Lina. “O projeto poderia ao menos apontar a necessidade de dolo [intenção] ou a restrição dessa responsabilização para quando houver abuso ou conluio.”
Outro litígio que deve persistir, de acordo com Lina, trata da possibilidade de pedir ao Fisco o que foi pago a mais (repetição de indébito) apenas se o contribuinte comprovar o ônus econômico do imposto, segundo o disposto no artigo 166 do CTN (artigo 36 do PL). “É comum o contribuinte ter o direito à devolução do que pagou a maior negado com base no artigo 166 do CTN, o que o leva ao Judiciário por enriquecimento ilícito do Estado”, diz Lina. “Manter essa exigência, violaria o princípio da simplicidade e manteria essa prática.”
O varejo também teria que recorrer aos tribunais por causa de uma velha queixa: a tributação das bonificações (produtos fornecidos além dos efetivamente encomendados). Para não serem tributadas pelo IBS e CBS, conforme diz o PL (artigo 12), as bonificações precisarão ser destacadas nas notas fiscais. “Essa burocracia já gera litígio atualmente e isso deve continuar existindo”, explica a advogada Thais Shingai, professora no Insper e sócia do Mannrich e Vasconcelos Advogados. Ela lembra que, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), há decisão favorável aos contribuintes (acórdão nº 9303-013.338).
No geral, o IBS e a CBS incidirão somente sobre operações onerosas. Mas Thais chama a atenção para algumas operações não onerosas que ficarão sujeitas à tributação, o que deve gerar novos questionamentos pelas empresas (artigo 12). “É o caso das doações entre partes relacionadas, que são filiais e outras empresas vinculadas em grupos empresariais”, diz. Ela aponta a previsão de que a base de cálculo corresponderá ao valor de mercado dos bens ou serviços “Nos preocupa porque a atribuição de valor de mercado é historicamente algo que gera divergência de interpretação.”
O PL também prevê que as receitas financeiras oriundas de reservas técnicas serão tributadas pelo IBS e CBS, o que afeta seguradoras e planos de saúde. “Já existe hoje contencioso sobre isso, envolvendo PIS/Cofins, com votos favoráveis às empresas no Supremo Tribunal Federal, mas o PL insiste na tese da Fazenda de que essas receitas decorrem da atividade principal desses contribuintes”, afirma Breno Vasconcelos, pesquisador no Insper e sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados. Segundo ele, para não haver esse risco de litigiosidade deveria ser excluída a alínea “b” do inciso I do artigo 219 do projeto.
Na Reclamação Constitucional nº 65301/SP, por exemplo, o STF concluiu que as receitas financeiras decorrentes das aplicações das reservas técnicas não caracterizam atividade empresarial típica das seguradoras. Segundo o voto do ministro Dias Toffoli no RE 400479-AgR-ED, “é o prêmio que decorre da atividade empresarial típica das seguradoras, e não outras receitas alheias ao desempenho de seu mister típico, como são as receitas financeiras em questão”.
“não são tributadas como um bem ou um serviço passarão a ser agora, como a locação de bens móveis, mas é a natureza do IVA”, diz.
Por outro lado, Peroba lembra que o IVA funciona sustentado em dois pilares: base ampla de tributação e uso integral do crédito. “Se o sistema de split payment [artigo 50], que exige que todo contribuinte tome conta de quem paga o imposto para poder tomar crédito, não funcionar corretamente, toda cadeia de produção será onerada e isso, com certeza, vai gerar litígio”, afirma.
Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/04/26/pontos-do-projeto-de-regulamentacao-da-reforma-podem-gerar-mais-judicializacao.ghtml